Cada célula retém uma memória da sua identidade, lembrando-se de quais genes devem ficar ativados - logo, esta informação não pode ficar nos próprios genes.[Imagem: Mariana Silva/Lars Jansen/IGC] |
Além do DNA
Apesar de geneticamente idênticas, as trilhões de células do corpo humano adulto são de diferentes tipos.
São células musculares, da pele ou do cérebro, mas todas dependentes dos genes que estão ativados e desligados no interior de cada uma.
Cada célula especializada retém uma memória da sua identidade, "lembrando-se" quais genes que devem ficar ativados e quais devem ser desligados, mesmo quando a célula se divide.
Ocorre que esta memória não está inscrita diretamente no DNA e, mesmo assim, ela é hereditária - é algo conhecido como informação epigenética.
Instruções epigenéticas
As instruções epigenéticas estão muitas vezes contidas em proteínas, que controlam não só os genes, mas também a organização dos cromossomas. Essas proteínas são conhecidas como centros epigenéticos.
Lars Jansen e a sua equipe do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Portugal, agora descobriram a forma pela qual um destes centros epigenéticos organizadores é fielmente transmitido entre a célula-mãe e as duas células-filhas que resultam da divisão celular.
Com estes resultados, a equipe não apenas elucida um processo biológico até agora enigmático, mas também abre caminho para a compreensão de mais uma possível causa do câncer.
Centrômeros
Os cientistas estudaram o centrômero, uma estrutura formada por proteínas, existente em todos os cromossomos, ligando-os ao esqueleto da célula (o chamado citoesqueleto) durante a divisão celular.
É o centrômero que assegura que, durante a divisão celular, cada célula-filha recebe exatamente um conjunto de cromossomas recém-formados.
O papel dos centrômeros é decisivo, uma vez que qualquer imperfeição no seu funcionamento dá origem a células com o número errado de cromossomos, o que é uma marca de células tumorais.
Pergunta sem resposta
"Quando as células se dividem, elas duplicam fielmente todos os seus genes, que são transmitidos a duas células-filhas. Algo de semelhante tem de acontecer com a informação não-genética.
"Mas como é que a célula copia proteínas? E como é que assegura que se produz o número correto de cópias?
"Esta é ainda uma pergunta sem resposta. Abordamos a questão recorrendo ao centrômero como modelo, uma vez que se conhece qual a proteína responsável pelo seu comportamento epigenético," explica Mariana Silva, que realizou os experimentos.
|
Memória molecular
|
A proteína chama-se CENP-A e mantém a "memória molecular" do centrômero, assegurando a passagem das informações das células-mãe para as células-filha.
Já se sabia que as células duplicam o seu DNA antes de entrar em mitose (o processo de divisão celular propriamente dito), mas a duplicação do centrômero, conduzido pela proteína CENP-A ocorre apenas após a mitose, num intervalo de tempo conhecido por G1.
O que faltava saber era o que dispara a duplicação do centrômero e de que forma a célula assegura a precisão deste processo.
Os cientistas portugueses descobriram que os processos de duplicação do DNA e de duplicação da CENP-A são controlados pelo mesmo complexo, que opera como um relógio molecular, impelindo a progressão sequencial das diferentes fases do ciclo celular.
As proteínas Cdk (do inglês cyclin-dependent kinases) são componentes-chave deste complexo: quando estão ativas (antes de se iniciar a mitose), o DNA é duplicado e a duplicação de CENP-A (isto é, dos centrômeros) é inibida.
Reciprocamente, quando as proteínas Cdk estão inativas (após a mitose), a CENP-A é duplicada, mas a duplicação do DNA fica bloqueada.
Fazendo uma analogia com o ciclo diurno, é como se o DNA se duplicasse à meia-noite, e o centrômero ao meio-dia, graças ao controlo das "proteínas-relógio" Cdk.
Hereditariedade epigenética
Os cientistas chegaram a este modelo em uma série de experiências nas quais eles inibiram a atividade da Cdk em células humanas e de galinha, em determinados instantes.
Eles verificaram que conseguiam enganar as células, induzindo-as a produzirem centrômeros novos, mesmo enquanto duplicavam o seu DNA. "Era como se as células estivessem com jet-lag," diz Lars Jansen.
Lars contextualizou a descoberta:
"O que descobrimos foi um mecanismo simples e ordenado, através do qual a célula emparelha a duplicação do DNA, a divisão celular e a construção do centrômero. Ao utilizar o mesmo complexo (as proteínas Cdk) para todos estes processos, a célula confere tempos diferentes, bem definidos, a cada processo, assegurando, desta forma, que se produzem o número correto de cópias de genes e de centrômeros.
"Manter estes processos separados temporalmente poderá ser crucial para evitar erros em cada um. E elucidar estes princípios gerais de hereditariedade epigenética é fundamental para a nossa compreensão da regulação dos genes, da organização dos cromossomas e das causas e origens das várias doenças que resultam de erros nestes mecanismos."
Nenhum comentário:
Postar um comentário