A diminuição da disfunção renal se deve à reversão da lesão associada à desorganização dos podócitos - células que são centrais para o processo de "filtragem" da urina, realizado nos glomérulos, as unidades funcionais dos rins. |
Inflamações nos rins
Cientistas brasileiros estão obtendo diversos avanços na compreensão dos processos inflamatórios relacionados às lesões renais.
O grupo, coordenado por Niels Olsen Câmara, da Universidade de São Paulo (USP), acaba de desvendar a estreita conexão entre a resposta inflamatória do sistema imunológico e a glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF), uma doença que pode levar à insuficiência renal aguda e ao decréscimo na função renal.
O trabalho, que será publicado em breve na revista Kidney International, mostra que a expressão de um receptor do hormônio bradicinina (receptor B1) é induzida durante o curso da doença.
Diminuindo a expressão do receptor B1, por outro lado, verificou-se uma melhora da disfunção renal.
Disfunção renal
De acordo com Câmara, a diminuição da disfunção renal se deve à reversão da lesão associada à desorganização dos podócitos - células que são centrais para o processo de "filtragem" da urina, realizado nos glomérulos, as unidades funcionais dos rins.
"O trabalho demonstrou, pela primeira vez, que o bloqueio dessa via é capaz de provocar uma melhora na disfunção dos podócitos. A descoberta abre perspectivas para estudos futuros que possam usar esses dados como ferramenta terapêutica.
A GESF é uma das principais doenças do glomérulo em crianças e adultos e pode voltar a ocorrer depois de um transplante de rim", disse o pesquisador.
Os dados foram gerados a partir dos trabalhos de iniciação científica de Bruna Buscariollo e de doutorado de Rafael Pereira.
Os cientistas utilizaram um modelo de indução de GESF por adriamicina - um fármaco de alta toxicidade usado clinicamente contra o câncer - a fim de estudar o papel do receptor B1 na evolução da doença.
Por outro lado, a administração de um antagonista do receptor B1 permitiu demonstrar que, com a diminuição de sua expressão, a doença pode, em tese, ser revertida.
"Considerando a complexidade das lesões renais agudas e crônicas, qualquer estratégia de tratamento efetivo para essas condições deverá ser capaz de modular o processo inflamatório na tentativa de reparar o tecido. Isso significa que o tratamento deve ser capaz de reverter as lesões agudas e suas consequências a longo prazo, restaurando a arquitetura do órgão e sua homeostasia - isto é, a propriedade de regular seu ambiente interno para manter uma condição estável, por meio de múltiplos ajustes controlados por mecanismos de regulação", explicou Câmara.
Insuficiência renal aguda
A insuficiência renal aguda - cuja mortalidade tem-se mantido acima dos 50% nos últimos 20 anos - provoca a longo prazo a perda da função do órgão. Além da GESF, a insuficiência pode ser causada pela toxicidade de drogas e, principalmente, por lesões de isquemia e reperfusão.
"Uma lesão em qualquer parte do corpo - como o esmagamento de uma perna, por exemplo, causa uma diminuição brusca na oferta de oxigênio para os rins, ocasionando lesões as lesões denominadas isquemia. Mais tarde, o restabelecimento dos níveis de oxigênio leva a uma segunda onda de injúria no ri, as chamadas lesões por reperfusão. Trata-se de um problema grave e muito comum. Quando o paciente necessita de diálise, a mortalidade pode chegar a 80%", disse.
As lesões renais agudas, segundo Câmara, são inevitavelmente associadas a um processo inflamatório, causando disfunção dos podócitos - no caso das glomerulopatias como a GESF - ou na chamada região túbulo-intersticial, no caso das lesões por isquemia e reperfusão.
"A persistência dessa resposta inflamatória pode levar à perda da arquitetura dos tecidos, com depósito de colágenos e o decréscimo na função renal - um processo até agora considerado irreversível. O estudo do processo inflamatório nas lesões renais agudas que acometem a região túbulo-intersticial é bem documentado na literatura. Mas a participação da resposta imune em doenças glomerulares havia sido pouco explorada até agora", afirmou.
Isquemia e fibrose renal
O papel dos receptores da bradicinina, segundo Câmara, já vinha sendo estudado há alguns anos por seu grupo de pesquisa em colaboração com o grupo dos professores João Bosco Pesqueiro e Ronaldo Araújo, ambos do Departamento de Bioquímica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
"Em outro modelo de estudo, no qual os animais são submetidos a uma isquemia renal e depois à reperfusão, ficou evidente a participação desse sistema na injúria renal", disse o professor do ICB-USP.
Resultados gerados pela pesquisa de doutorado de Pamella Wang demonstraram, segundo Câmara, que o receptor B1 tinha papel central na resposta inflamatória desencadeada pela isquemia. Os dados foram publicados na revista PLoS One, em 2008.
"Tantos os animais geneticamente deficientes para o receptor B1 como os tratados com antagonistas farmacológicos, após injúria renal apresentaram uma menor disfunção dos rins associada a uma expressão aumentada de certas citocinas antiinflamatórias, substâncias que mediam diversos processos no organismo", disse.
Outro trabalho abordou o contexto do desenvolvimento de fibrose renal após uma lesão nos rins. Os animais geneticamente deficientes para o receptor B1 apresentaram menor depósito de colágeno após a obstrução do fluxo urinário. Os resultados do estudo foram publicados na revista International Immunopharmacology, em 2006.
"Todos esses dados obtidos em modelos experimentais indicam que as afecções renais agudas e crônicas têm uma participação ativa do sistema de cascatas enzimáticas que envolvem a bradicinina. Estamos vendo que a participação desse sistema vai além dos papéis conhecidos do hormônio bradicinina, envolvendo uma regulação da função dos podócitos e o controle do processo inflamatório", disse Câmara.
Proteínas e moléculas
Além de revelar a relação entre o receptor B1 e a GESF, o trabalho que será agora publicado na Kidney International também demonstra que o bloqueio do receptor B1 se traduziu no aumento da expressão da hemeoxigenase-1 (HO-1), proteína que tem diversas funções fisiológicas no organismo.
De acordo com Câmara, a vertente central do Projeto Temático que coordena consiste em investigar o papel da HO-1 em diferentes processos inflamatórios renais em modelos animais.
Os estudos sobre bradicinina e lesão renal fazem parte dessa linha de pesquisa mais ampla.
"Nosso laboratório vem estudando vários mediadores presentes no processo inflamatório nas afecções renais e a resposta dos tecidos a essas agressões. Uma importante faceta nesses estudos é a percepção de que, frente a uma agressão, o órgão desenvolve uma resposta protetora ao aumentar a expressão de uma série de moléculas com capacidade intrínseca de proteção celular. A HO-1 é uma dessas moléculas", explicou.
A HO-1 está presente em plantas e animais, o que sugere uma grande importância da molécula em termos evolutivos. Quando há uma lesão em um tecido, a expressão HO-1 é aumentada, o que faz dela um sensor de estresse celular - isto é, uma espécie de marcador de lesões teciduais.
"Por outro lado, quando há lesão, o aumento da expressão dessa molécula ocorre porque ela é capaz de modular o processo inflamatório. Por isso, houve interesse em investigar se essa modulação poderia alterar a evolução de uma patologia", disse Câmara.
Ao verificar que a proteção originada com o bloqueio do receptor B1, em diferentes modelos que usamos, foi associada a uma alta expressão da HO-1, os estudos realizados pelo grupo do ICB-USP sugerem que vias metabólicas conservadas evolutivamente são conectadas a diferentes cascatas do processo inflamatório.
"Seria possível, então, pensar em meios e métodos de potencialização dos mecanismos naturais de defesa do organismo como uma terapia clínica auxiliar", sugeriu.
Proteção celular
Vários trabalhos na literatura internacional, incluindo os estudos do grupo coordenado por Câmara, mostraram efeitos de proteção celular da HO-1 em modelos experimentais de doenças renais agudas. "No entanto, até agora não existiam dados comprovando a capacidade da HO-1 em reverter um processo cicatricial renal já instalado", afirmou.
Dados obtidos na pesquisa de doutorado de Matheus Corrêa Costa - que também está sendo realizado no ICB-USP com Bolsa da FAPESP - mostram que o tratamento com um potente indutor de HO-1 diminuiu significativamente os marcadores de inflamação assim como a expressão de moléculas relacionadas ao desenvolvimento de fibrose renal nos animais submetidos a uma obstrução irreversível do fluxo urinário. O trabalho foi aceito para publicação, em 2010, na revista PLoS One.
"Sete dias depois da obstrução, o tratamento tardio com esse indutor de HO-1, conhecido como hemin, foi capaz também de diminuir a expressão de moléculas que favoreciam a fibrose e a inflamação, além de reduzir a deposição de colágeno. O estudo mostrou, pela primeira vez, que a HO-1 pode reverter o processo de cicatrização renal já instalado, provavelmente induzindo a diferenciação de miofibroblastos", disse.
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