O Brasil foi eleito o palco do Dia Mundial de Luta Contra a Aids, celebrado nesta quarta-feira. No centro das comemorações está o secretário-geral-adjunto da ONU, o africano Michel Sidibé. Há dois anos à frente do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), ele embarca nesta terça-feira para Brasília para homenagear o presidente Luís Inácio Lula da Silva, por seus esforços na luta contra a doença. Em breve passagem no Rio, Sidibé deu a entrevista abaixo ao GLOBO e revelou que ainda há 10 milhões de pessoas esperando por tratamento no mundo. No ano passado, morreram 1,8 milhão de pessoas em decorrência da Aids e nasceram 370 mil bebês portadores do vírus HIV. A nova meta para atingir o acesso universal (todos em tratamento) é 2015.
O GLOBO: Quarta-feira é o Dia Mundial de Luta Contra a Aids. Por que comemorá-lo no Brasil?
MICHEL SIDIBÉ: Este é um momento muito importante para lembrar as milhões de pessoas que perderam suas vidas por causa do vírus HIV. É, também, uma data para avaliarmos o que faremos no futuro. E o Brasil é um país crucial para nós. É um dos países com melhor programa de combate à doença, um dos mais dedicados a pôr as pessoas em tratamento. Passar o 1º de dezembro aqui é uma oportunidade única para reconhecer a liderança do presidente Lula em construir novas parcerias, especialmente com países africanos (Lula receberá o prêmio "Unaids Award for Leadership", em reconhecimento a seus esforços no combate a Aids).
O GLOBO: Os recursos investidos hoje no combate à doença são suficientes?
SIDIBÉ: Não, nem nunca serão. Mas houve progresso. Apenas 12 anos atrás, os investimentos eram de US$ 350 milhões. Agora, são US$ 16 bilhões. Contamos com a solidariedade global para mobilizar ainda mais recursos. Se quisermos atingir todas as pessoas com necessidade de tratamento, serviços e assistência, nós precisamos de mais US$ 10 bilhões.
O GLOBO: Como o senhor avalia o tratamento oferecido hoje no Brasil?
SIDIBÉ: O Brasil introduziu uma lei constitucional relacionada a programas de tratamento quando ninguém falava nisso. O país mostrou que a reserva de fundos para um programa de assistência era possível. E, assim, introduziu um novo debate no mundo, criou um ambiente favorável para parcerias. Foi o que ocorreu apenas algumas semanas, por exemplo, quando o presidente Lula visitou Moçambique.
" Nos últimos cinco anos, não conseguimos atingir 100% de nossa meta, mas criamos uma grande situação. Quebramos uma conspiração silenciosa, que não falava em sexo entre homens, em profissionais de sexo, em viciados em drogas. Agora, todos eles estão na agenda mundial "
O GLOBO: Em que países a expansão da Aids é mais preocupante?
SIDIBÉ: A epidemia está crescendo mais rapidamente no Leste Europeu e na Ásia Central, onde, nos últimos dez anos, ocorreram 25% das novas infecções por vírus HIV. Um detalhe é que, desse contingente, 90% estão concentrados em apenas dois países, Rússia e Ucrânia. Na África, conseguimos quebrar a trajetória de crescimento da epidemia. Dos 56 países do mundo que conseguiram estabilizar ou reduzir significativamente o seu registro de infecções, a maioria está naquele continente. Isso é muito encorajador. É a primeira vez que podemos dizer que jovens estão presenciando políticas de prevenção. A distribuição de preservativos melhorou. A quantidade de pessoas que recebe tratamento na África passou de 300 mil para quase 4 milhões em apenas cinco ou seis anos. É um avanço considerável, mas ainda há problemas. São 10 milhões de pessoas em todo o planeta ainda sem acesso a tratamentos, sendo que 7 milhões estão na África. Este é um desafio crucial que teremos no futuro.
O GLOBO: Quatro anos atrás, a ONU determinou que, em dezembro de 2010, haveria acesso universal ao tratamento da Aids para os portadores do vírus HIV. Mas, em setembro, segundo a própria ONU, apenas um terço dessas pessoas recebia alguma assistência. O que aconteceu para que a meta não fosse cumprida?
SIDIBÉ: O acesso universal passa pelo debate de como criar espaços para justiça social, de distribuição de oportunidades para atingir os excluídos. Nos últimos cinco anos, não conseguimos atingir 100% de nossa meta, mas criamos uma grande situação. Quebramos uma conspiração silenciosa, que não falava em sexo entre homens, em profissionais de sexo, em viciados em drogas. Agora, todos eles estão na agenda mundial. Há um movimento para rediscutir más leis, que restringiam os direitos dessas camadas da população. A China, por exemplo, mudou completamente seu projeto referente aos usuários de drogas, tendo hoje um dos maiores programas para este setor da Ásia. Países como Vietnã também mudaram sua legislação para garantir que dependentes químicos tenham acesso ao sistema de saúde. É um passo fundamental para garantir acesso universal. Antes, dizia-se que o tratamento não estaria disponível, que seria muito caro, que nunca chegaria aos mais pobres, que haveria resistência. Todo o estigma, a paranoia, a impossibilidade foram removidas. Foi assim que conseguimos mobilizar mais recursos, com a pressão social.
O GLOBO: Ainda há, no entanto, o que fazer.
SIDIBÉ: Sim. Ainda temos 10 milhões de pessoas esperando por tratamento. No ano passado, morreram 1,8 milhão de pessoas em decorrência da Aids. Nasceram 370 mil bebês portadores do vírus HIV. Nossa nova meta para atingir o acesso universal é 2015, e estou muito otimista. Mudamos a forma como eram feitas as negociações.
O GLOBO: Neste mês, o Papa afirmou que o uso de preservativo é justificado "em certos casos", para reduzir os riscos de contaminação pelo vírus da Aids. O que o senhor achou desta declaração?
SIDIBÉ: É um progresso significativo do Vaticano, que criará uma nova oportunidade para avançarmos em nossos projetos de prevenção. Podemos criar uma nova parceria com a Igreja, algo relacionado à educação sexual, em que mostremos a inclusão da camisinha como uma ferramenta fundamental para a prevenção contra a Aids. Mas sabemos que, na realidade, isso não é o suficiente. Se não houver uma ligação entre a prevenção e as crenças religiosas, não haverá mudança social.
O GLOBO: O senhor espera novas "concessões" do Papa ao uso de preservativos?
SIDIBÉ: O que o Papa fará depois, eu não sei. Mas temos de investir no trabalho em campo, algo que nos possibilite a usar a declaração do Papa como uma oportunidade.
O GLOBO: No ano que vem, a epidemia mundial da Aids completa 30 anos. Que balanço o senhor faz do que ocorreu nestas décadas?
SIDIBÉ: Estou esperançoso. Vimos que a Aids não é apenas um problema. É uma oportunidade para mudanças sociais. Ela nos ajudou a levar luz para áreas não exploradas, ajudou-nos a falar sobre o valor do ser humano, sobre a restauração da dignidade de grupos que eram discriminados, estigmatizados. É uma doença que propiciou o debate sobre problemas de comércio, sobre medicamentos e serviços que precisam estar disponíveis para os pobres. O HIV pode ser ligado a questões diversas, dos direitos humanos ao combate à tuberculose. É, enfim, uma oportunidade quando é retirada de seu suposto isolamento, quando a usamos para promover mudanças. Vimos progresso na qualidade das drogas, na criação de novas. Pela primeira vez temos uma ferramenta, um gel, que a mulher pode usar para se proteger sem pedir qualquer autorização para os homens. Vemos o futuro com muito otimismo.
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